domingo, 29 de janeiro de 2012

Anfetaminas e estimulantes alcoólicos são vendidos livremente às margens de rodovias

Em paradas nas rodovias mineiras, caminhoneiros admitem cansaço mesmo sob efeito de substâncias

Mateus Parreiras

Publicação: 29/01/2012 06:59 Atualização: 29/01/2012 07:17

20120129070516681859oOs rebites usados como estimulantes pelos caminhoneiros são comercializados abertamente em farmácias

Medina – O assunto dos caminhoneiros no banheiro masculino eram as “raparigas” (prostitutas) que se ofereciam no pátio do posto de abastecimento da BR-116, em Medina, no Vale do Jequitinhonha. Esbaforido, um jovem loiro de camiseta preta chega reclamando com dois conhecidos. “Misericórdia, não aguento mais!”, grita. “Tenho de chegar a Jequié (BA) hoje. Minas pernas estão queimando no motor. Tô morrendo de sono e o rebite não está segurando”, reclama, sem pudor de falar sobre drogas. Munido de rebites comprados de um prostituta, o rapaz sai do banheiro e se dirige para sua carreta bitrem. Não sem antes criticar uma reportagem na TV que mostrou a ação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) multando quem sinalizava na estrada com os faróis avisando sobre as blitzes.

Nas paradas de apoio e postos de abastecimento das rodovias estaduais e federais mineiras, caminhoneiros conseguem com facilidade estimulantes que os permitam dirigir por mais tempo. Os rebites, drogas à base de anfetaminas, são o recurso mais comum de quem precisa conduzir carretas com mais de 70 toneladas por mais de 24 horas. “A droga é um estimulante do cérebro que aumenta os batimentos cardíacos e a circulação do sangue. Mas quando o efeito passa, a pessoa desacelera de uma vez e sente todo cansaço do esforço acima de sua capacidade”, alerta o psiquiatra Valdir Campos, coordenador do Ambulatório de Dependência Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Quem usa muito e se torna viciado não melhora nem se tomar mais doses, podendo dormir ao volante”, acrescenta.

O caminhoneiro S.S.P, que fazia a rota Feira de Santana (BA) – Pirapora (MG), admite que teve os reflexos alterados numa das vezes em que dirigiu sob efeito de rebite. “Fiquei alucinado com os rebites. Viajei por 24 horas e nem lembro por onde passei”, disse. De acordo com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), foram apreendidos no ano passado em Minas Gerais 1.300kg de drogas (maconha, crack e cocaína) e 3.139 comprimidos de anfetaminas e outros medicamentos considerados "rebites". Comprar a droga não é difícil. Nas BRs 116, 135, 251 e 381 a venda dos produtos ocorre abertamente, por vezes promovida por frentistas. Um dos focos mais evidentes desse comércio aberto é a pequena Frei Inocêncio, no Vale do Rio Doce. Cortada ao meio pela BR-116, a cidade de 9.246 habitantes tem seus principais estabelecimentos voltados para a estrada.

“Melhor que pinga”

A reportagem do Estado de Minas foi ao município e constatou como é fácil adquirir substâncias proibidas. No primeiro posto de gasolina, mais afastado, os frentistas disseram que não tinham mais o produto e recomendaram procurar nas farmácias da cidade pelo nome de “manipulado”. A garçonete do posto, no entanto, oferece um “outro rebite”. Sem sair do balcão, alcança uma caixa repleta de tubos de um composto alcoólico chamado Ligadão. O pequeno tubinho de 10 mililitros com um líquido marrom custa R$ 2,50 e é encontrado aos montes nas lixeiras, sobre balcões e mesas dessas paradas de carreteiros. O teor alcoólico é de 13%, semelhante ao de alguns vinhos.

“É o novo rebite. Os caminhoneiros tomam para viajar quando não têm as pílulas. É melhor do que pinga com guaraná, porque dá para jogar fora pela janela e beber muitos na viagem”, recomenda a garçonete. A venda e o consumo de bebidas alcoólicas em estabelecimentos às margens e na área de domínio de rodovias são proibidos, mas a polícia praticamente não interfere nessa atividade.

Confira vídeo com o flagrante da venda:

Abusos podem levar à morte

A sonolência é apenas um dos efeitos dos rebites e outros tipos de substâncias sobre caminhoneiros que recorrem à química para viajar por mais tempo. O uso frequente desses produtos causa dependência e pode levar à morte. “Meu patrão, que era caminhoneiro antes de comprar a frota, chegou a ter quatro enfartes quando completou 40 anos. Tudo por causa dos rebites e do álcool que tomava para aguentar o tranco das viagens”, revela Simão (nome fictício), de 40 anos, outro caminhoneiro acompanhado pela reportagem do Estado de Minas pelas BRs 381 e 116. “Em vez de ficar alerta, o caminhoneiro viciado terá sintomas prejudiciais, como cansaço excessivo, hipertensão, alteração da temperatura corporal, convulsão e problemas cardíacos, como infarto agudo do miocárdio”, enumera o psiquiatra Valdir Campos, do Ambulatório de Dependência Química da UFMG.

O abuso, garantem especialistas, leva também a atitudes descontroladas que podem resultar em acidentes mesmo quando o motorista não cai no sono. As pupilas dilatadas permitem que mais luz entre nos olhos. Quem roda à noite pode ter a visão ofuscada pelo brilho dos faróis de outros veículos, perdendo o traçado de uma curva, invadindo a contramão ou saindo da pista. “Há pacientes que tomam 40 comprimidos de uma vez. Dependendo da dose, do tempo de uso e da situação, o caminhoneiro pode desenvolver sintomas que lembram a esquizofrenia paranoide, uma doença psiquiátrica em que o paciente se sente perseguido. Acha que estão atrás dele”, conta Valdir Campos. “Por causa dessas sensações o sujeito toma decisões e atitudes intempestivas e arriscadas. Pior é que isso ocorre exatamente no momento em que está dirigindo uma carreta”.

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o terceiro maior consumidor de anfetaminas do mundo, com média de dez doses diárias por mil habitantes, atrás apenas da Argentina e dos Estados Unidos, com 17 doses diárias. Além de caminhoneiros, alunos que precisam estudar por mais tempo, candidatos a concursos e até adolescentes que querem ficar mais magros usam anfetaminas.

Numa farmácia em Frei Inocêncio foi possível comprar o produto chamado de “manipulado”. O balconista não faz qualquer cerimônia. “Temos do verdinho. Custa R$ 30 o frasco com 20 pílulas”, diz. O rapaz vai até os fundos da farmácia e busca o pote de plástico embalado num papel cinza. Não há qualquer referência às substâncias contidas nas pílulas verde e brancas, suas indicações, contraindicações, data de fabricação e responsabilidade do fabricante, como manda a legislação que rege a manipulação de remédios em farmácias. “É um produto irregular e ainda mais perigoso. Não é como os rebites populares, geralmente inibidores de apetites ou anfetaminas para tratamentos de outras doenças que são desviados”, destaca o psiquiatra Valdir Campos.

Combate difícil

A Polícia Rodoviária Federal (PRF) admite ser difícil o combate ao comércio de drogas estimulantes usadas pelos caminhoneiros. Principalmente porque “na maioria das vezes a venda é feita no varejo”, informou a PRF por meio de nota. De acordo com a corporação, fiscalizações ostensivas são feitas em todos os tipos de veículos, “inclusive com vistoria interna. Várias operações e apreensões foram realizadas em 2011, em borracharias ou postos de gasolina”.

Para evitar a distribuição das drogas, a estratégia dos policiais é promover projetos como o Comando de Saúde nas Rodovias, que desde 2006 abordou 56 mil motoristas em Minas. “O objetivo é alertar os condutores sobre os cuidados com a saúde”, informou a PRF.

Para o capitão PM José Procópio Corrêa Júnior, o grande volume de veículos pesados, somado à falta de segurança que os caminhoneiros têm para fazer paradas periódicas, contribuem para os índices altos de violência. De acordo com o militar, para combater abusos nas estradas e o uso de drogas como os rebites, é preciso mais denúncias.

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