01/10/2011 07h31
Sem conseguir se calar diante das mortes incessantes na BR-381, o médico e músico Aggeu Marques, admirador dos garotos de Liverpool, articulou um mega show de protesto em João Monlevade com a participação de grandes nomes da música mineira. Artistas e populares exigem das autoridades a duplicação emergencial da "Rodovia da Morte"
Flávia HenriquesComo músico, preciso da estrada para poder levar a minha arte para outros lugares do Brasil. E sofro como qualquer cidadão
Há quem pense não ser possível exercer ao mesmo tempo duas profissões com a mesma paixão e profissionalismo. Não é esse o caso do médico Aggeu Vieira Marques Neto, de 47 anos, especializado em ultrassonografia. Há 11 anos residindo em João Monlevade, e há 19 casado com a também médica Ângela Pinheiro Chagas Marques, 41 — com quem tem Paula (5)—, Aggeu confessa se sentir completo somente quando, entre uma consulta e outra, solta a voz, compõe e reverencia os ídolos. Ele é fã dos Beatles, fonte de inspiração para sua passagem por bandas cover como Hocus Pocus, Sgt. Pepper´s e, atualmente, Yesterdays. Aliás, a segunda já foi considerada a maior banda cover dos ícones ingleses em um concurso anual promovido em Liverpool.
Aggeu fez uso de seu pluralismo para se engajar também nas causas sociais. Aproveitou toda a bagagem e influência no meio musical para, junto de diversos amigos artistas da MPB, promover, no último dia 16, um show de protesto contra o descaso das autoridades em relação à matança rotineira da BR-381, a “Rodovia da Morte”. Mais de cinco mil pessoas, segundo a PM, assistiram ao espetáculo, que teve a participação da Banda 14 Bis e dos artistas Ana Cristina, Fabrício & Elcimar, Fio da Navalha, In Focus, Luís Carlos Sá (da dupla Sá & Guarabyra), Márcio Greyck, Maurício Gasperini, Paulinho Pedra Azul, Rômulo Rás e Telo Borges.
A perda de um colega da banda 14 Bis foi a gota d’água para que o evento fosse realizado com tantas adesões.
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) divulgou recentemente que, em média, ocorrem 25 acidentes com vítimas fatais a cada cem quilômetros da rodovia. A via conta com mais de 50 anos e nunca passou por uma obra de modernização. O seu traçado sinuoso aliado à imprudência dos motoristas compõe uma fórmula letal, capaz de vitimar famílias inteiras. O trecho que margeia João Monlevade e segue em direção a Vitória, no Espírito Santo, é considerada pela PRF como o mais perigoso. Somente no ano passado, 111 pessoas morreram nesta parte da rodovia.
Com os recentes escândalos no Ministério dos Transportes e no Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit), foi suspenso o projeto de duplicação da BR-381. O problema vai se arrastar. A falta de manutenção e fiscalização do transporte de cargas ao longo da rodovia explicita a negligência do poder público nas mais diversas formas. Certamente, o episódio mais inconveniente para motoristas de todo o Brasil que cruzam a BR foi o da interdição da ponte sobre o Rio das Velhas, em Sabará. Desde abril deste ano, quem passa por lá enfrenta uma verdadeira via crucis. Para manter o fluxo de veículos, que chega a 30 mil carros por dia, foi instalada uma ponte provisória, até que a nova fique pronta.
São esses absurdos que estimulam Aggeu a agir, sempre consciente de que esse é apenas o início de um movimento. A ação rápida do governo em torno da duplicação somente ocorrerá, segundo ele, quando a sociedade se mobilizar para cobrar uma postura digna por parte das autoridades em relação à rodovia. Trabalho, arte, música, política, morte e vida são temas da entrevista a seguir.
O fato de o senhor atuar como médico e artista facilita a compreensão do quanto a obra na BR-381 se faz necessária?
Sim. Talvez por exercer ambas as profissões, eu tenho um sentimento dobrado do mal que esta estrada, sem duplicação, faz para a região. Como médico, a gente convive com pessoas que são afetadas diretamente em seu estado de saúde pelos acidentes e perdas familiares e de amigos. Não trabalho especificamente na área de trauma, mas tenho amigos que convivem diariamente com esse drama. Como músico, preciso da estrada para poder levar a minha arte para outros lugares do Brasil. E sofro como qualquer cidadão.
Em sua opinião, o que falta aos governantes para conseguirem visualizar o ser humano por trás dos números?
A visão deles é estritamente política e, há muito tempo, não é de interesse do Governo Federal o desenvolvimento de Minas Gerais, em todos os aspectos. Nosso estado tem um potencial enorme em relação ao Brasil, o que gera um desconforto político. Então, só desenvolvemos às nossas custas, apesar de ser o estado que sempre definiu o presidente do país.
Por que somente agora a sociedade resolveu acordar para o problema e brigar por uma duplicação, exigindo a humanização da estrada?
Porque hoje todo mundo tem acesso mais fácil à informação. Seja por internet, TV... e a gente sabe que o grande erro básico foi a maneira que a estrada foi construída. Há 50 anos, os Estados Unidos também estavam passando por um processo de criação de novas estradas. Só que lá as estradas foram pensadas para o futuro. Grandes vias como a nossa, naquele país, foram construídas em linha reta, com obras de arquitetura como pontes, túneis, que interferiram muito menos no meio ambiente e foram muito mais eficazes como estradas. Além disso, para se chegar a outras cidades durante o trajeto, criaram-se variantes. Assim, é muito mais barato e não causa tanto impacto no meio ambiente. Aqui, as construtoras ganharam por km asfaltado, ou seja, quanto maior a distância entre dois pontos, melhor era para elas. Duplicação é conserto de um erro, visa amenizar um problema. O que era necessário seria uma nova estrada.
Recentemente um colaborador da Banda 14 Bis foi vítima da estrada. Foi essa a motivação do show, para que não ficasse apenas como mais um na estatística?
Foi a gota d’água para a realização do show. Na verdade, a estatística é incompleta, pois não revela os que morreram em consequência do acidente. Somente as mortes no local são contabilizadas. Acidentes piores aconteceram, mas diante das recentes denúncias, envolvendo o Dnit e o Ministério dos Transportes, a crença de que ocorreria a duplicação foi por água abaixo. Por isso, o protesto é para exigir a duplicação imediata da BR em caráter de emergência e calamidade pública.
Para o senhor, o Dnit tem sido um órgão negligente?
Negligente, imperito e incompetente, que está com suas mãos sujas do sangue derramado pelos mortos na 381. Com mãos sujas também estão o Ministério dos Transportes e a Presidência da República, todos responsáveis pela morte e invalidez de cada ser humano ocorridas nesta fatídica rodovia.
O trabalho da PRF é satisfatório?
Esses “caras” são uns heróis. Comparo a atuação deles como a de um médico sem recursos necessários no meio de uma guerra. Eles são tão interessados na duplicação quanto nós. O contingente é insuficiente, as viaturas são precárias e os perigos são muitos. O grande problema em torno da fiscalização é de responsabilidade do Dnit, que não implantou balanças para impedir o tráfego de veículos com sobrecarga. O papel da fiscalização da PRF está no controle da velocidade, no estado do veículo e no estado do condutor.
Muitos motoristas de caminhão fazem uso de energéticos e drogas para permanecerem acordados. Que tipo de risco esse comportamento pode provocar na estrada?
O problema maior é com as drogas, já que os energéticos não causam alteração do estado de consciência dos motoristas. Em relação aos caminhoneiros, esse não é o único problema. Os veículos com sobrepeso, a falta de solidariedade e humanidade no trânsito, além do excesso de velocidade são tão determinantes quanto o uso de drogas como fatores causais de acidentes.
O senhor concorda que falta respeito ao próximo por parte dos motoristas?
Totalmente, essa perda do respeito e solidariedade parece que são marcas do tempo em que estamos vivendo. E digo em todos os sentidos. O problema está no ser humano e não somente com a estrada.
Qual é o sentimento dos seus colegas da área médica em relação às vítimas dos acidentes?
É uma sensação de revolta e impotência frente a uma situação descontrolada. O que mais frustra o médico é saber que o que ele está tentando corrigir é uma coisa evitável. Ou seja, um acidente que poderia não ter acontecido se as condições da estrada fossem melhores. Isso tem a mesma importância de um paciente que poderia ter se prevenido para evitar um câncer, por exemplo, fazendo exames periódicos como mamografia, exame de próstata etc.
O Hospital Margarida tem sido polo e referência no atendimento às vítimas dessa estrada. Por que não há projetos que atendam às necessidades dessa unidade hospitalar?
Porque políticos são políticos. E a maior parte deles está muito distante de ter conhecimento adequado para exercer as suas funções. Isso para dizer o mínimo, porque algumas atuações políticas são extremamente danosas para o sistema de saúde. Além disso, a região não tem representatividade política forte o suficiente para mudar a situação. Uma região importante e rica como a nossa, que gera uma quantidade de riqueza impressionante para Minas e o Brasil, merecia ser tratada com mais decência e dignidade.
Conte como têm sido os seus dias, após o compromisso assumido com a sociedade ao protestar para que a duplicação ocorra em caráter de emergência?
Parece que cada dia tem 36 horas. É que eu tenho dormido em torno de cinco. Mas ao mesmo tempo, a solidariedade e a resposta positiva que tenho recebido da sociedade como um todo, da classe artística e grande parte da imprensa, tem me mostrado que está valendo à pena ter tomado esta iniciativa. Não posso reclamar, pois sabia que seria assim.
Qual a importância do Serviço Voluntário de Regaste de João Monlevade (Sevor) atuando na perigosa estrada?
Comparo os membros do Sevor a anjos da guarda. Acho que isso diz tudo.
Em agosto, comemoramos o Dia dos Pais. O que o senhor diria aos pais que perderam seus filhos ainda jovens nessa estrada marcada por tantas tragédias?
Não tenho palavras para consolar a dor deles, ainda mais nessa circunstância. A dor de uma perda como essa é tão forte que não tem nome. Você pode ficar viúvo, órfão, mas não tem nome para quem perde um filho.
O senhor tem medo de viajar por essa estrada? Já perdeu algum familiar nela?
Não tenho medo, tenho pavor... Acho que essa vai ser a resposta que todos vão te dar. Graças a Deus, nunca perdi um parente nela.
Que dicas o senhor pode dar para uma direção segura, no que diz respeito às condições físicas dos motoristas?
Sempre viajar descansado, bem disposto e alerta, sem consumo de bebidas alcoólica e/ou drogas. Dirigir sem pressa, programando os seus compromissos, além de manter o veículo em bom estado.
O que o senhor diria aos governantes?
Vou repetir: senhores governantes, por favor, lavem suas mãos impregnadas do sangue derramado pelas vítimas da 381.
Fonte: DeFato Online
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